Queimadas e adoecimento
- universidadepopula6
- 2 de out. de 2024
- 5 min de leitura
Por Lupin Marques Louback *
Última modificação: 02/10/2024
Gradualmente, vamos respirando e morrendo. Só até setembro deste ano (2024), foram 11 milhões de hectares queimados, o que equivale a uma área de 110 mil km2, ou seja, cerca de 1,29% da área total do Brasil foi queimada em 8 meses. Em menos de 78 anos, nesse ritmo, teríamos o Brasil inteiro em chamas e todos podemos sentir os efeitos das queimadas: nós, em nossa saúde, e eles, em seus bolsos.
Em 2020, o Ministério da saúde lançou um documento acerca das queimadas e incêndios florestais, com alerta de risco sanitário e recomendações para a população, demonstrando que já se trata de um problema de saúde pública de nível nacional. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), no Brasil, todos os anos, entre junho e novembro, observa-se um aumento no registro de focos de calor. As queimadas e incêndios florestais ocorrem principalmente nos biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal, com um aumento correlato nos índices de desmatamento. As projeções indicam que os regimes de fogo nessas regiões tendem a se intensificar devido às mudanças climáticas, que resultam em condições mais secas e, assim, inflamáveis, levando a uma possível duplicação da área queimada por incêndios florestais até 2050.
A OMS considera a poluição do ar como uma das 10 principais ameaças à saúde, com dados que revelam que 9/10 pessoas respiram ar com altos níveis de poluentes e que produz cerca de 7 milhões de mortes prematuras por ano, com desfecho de mortalidade devido a doenças respiratórias (a exemplo de câncer de pulmão, asma e DPOC, além de infecções agudas), cardiovasculares e neurológicas (por exemplo, AVC), em especial nos grupos mais suscetíveis, como em crianças e idosos. Além desses, também observa-se impacto na alimentação, moradia e qualidade de vida de forma geral. Durante a queima de biomassa e incêndios florestais, diversos poluentes são emitidos, incluindo material particulado (PM), dióxido de enxofre (SO₂), óxidos de nitrogênio (NOx), monóxido de carbono (CO), ozônio (O₃), hidrocarbonetos (HC) e Poluentes Climáticos de Vida Curta (PCVC), como o carbono negro, além de outras substâncias altamente tóxicas. Essas substâncias prejudicam a qualidade do ar por longos períodos de tempo, mesmo que o fogo tenha cessado, e por milhares de quilômetros de distância da área queimada. Como se não bastasse, essas substâncias continuam agindo no organismo mesmo após meses da exposição.
Além da consequência direta da ação da fumaça, o aquecimento global secundário à queima de matéria orgânica e combustíveis fósseis também possui efeitos deletérios sobre nossa saúde. A exposição a altas temperaturas pode resultar em doenças relacionadas ao calor, como exaustão pelo calor, insolação e cãibras de calor, sendo a insolação uma emergência médica potencialmente fatal. Além disso, altas temperaturas podem agravar condições crônicas, como doenças cardiovasculares, respiratórias e renais, com um aumento nas admissões hospitalares por falência renal, infecções do trato urinário e sepse durante ondas de calor. Por fim, a exposição direta ao calor solar pode prejudicar o desempenho cognitivo e físico, afetando a motricidade mesmo sem um aumento significativo na temperatura corporal central. Outrossim, a baixa umidade relativa do ar também é perigosa, tendo em vista que, além da desidratação, também pode levar a sintomas agudos nos olhos e vias aéreas, prejudica a imunidade, estimula a propagação de vírus, intensifica e exacerba doenças respiratórias crônicas e aumenta a mortalidade por doenças cardiovasculares.
Além dos prejuízos à saúde, devido à capacidade do calor e da fuligem de conduzirem corrente elétrica, quando as queimadas ocorrem próximo à rede elétrica, pode haver um desligamento da rede e falta de energia, que pode ocorrer não só na região afetada, como também em toda a área dependente dessa via de condução. São estudantes sem aulas, hospitais incapazes de atender doentes, trabalhadores sem emprego, moradores e comércios no escuro. Isso sem mencionar todo o prejuízo à biodiversidade, com destruição ambiental e perda da fauna, da flora e das riquezas naturais.
Dentre os fatores que intensificam as queimadas, podemos mencionar o avanço do desmatamento, a ampliação das áreas de pastagem e atividades econômicas ligadas à agropecuária. Na maioria das vezes, são queimadas de ação antrópica criminosa. São agricultores renovando pastos e grupos que promovem desmatamento com finalidade de eliminar vegetação rasteira e retirar madeira para comercialização. Tais incêndios pintam com fogo insaciável o quadro do pretenso desenvolvimento econômico associado a uma dinâmica global que preza pela garantia de suprimentos cumulativos e pelos lucros de corporações transnacionais em detrimento à vida humana. O capitalismo monopolista, cuja razão de ser é a busca pelo lucro, está degradando a natureza e ameaçando a sobrevivência da biosfera, demonstrando a contradição entre o modelo socioeconômico capitalista e a humanidade.
A essência destrutiva do capitalismo transforma a natureza em insumos para a produção de mercadorias, enquanto gera cada vez mais resíduos, os quais você tem a generosa oportunidade de parcelar em até 24 vezes no cartão de crédito. Ao buscar incessantemente o capital, esse modelo socioeconômico consome incessantemente energia humana, na forma do trabalho, e energia natural ou física, cuja maior parte é obtida por meio de fontes emitentes de gases estufa, como dióxido de carbono (da queima de combustíveis fósseis e matéria orgânica), metano (proveniente da degradação da matéria orgânica nas represas hidrelétricas) e óxido nitroso (secundário aos fertilizantes da agricultura industrializada), que agravam o aquecimento global e contribuem para uma crise climática de proporções anteriores à própria vida humana na Terra.
Trata-se de uma nova extinção em massa se desenrolando diante dos nossos olhos, um dos frutos da mudança climática global, mas, em detrimento a eventos geológicos, o capitalismo é a máquina de combustão mundial, em um fenômeno que se retroalimenta, transformando as florestas queimadas em emissoras (e não mais captadoras) de monóxido de carbono, e reduzindo a capacidade dos oceanos de reterem gás devido à acidificação secundária ao calor. Isso sem mencionar os inúmeros microrganismos retidos pelo gelo nos polos com os quais nenhuma espécie viva teve contato. Se a COVID — gerada por vírus com o qual nossa espécie já possuiu contato prévio em algumas epidemias nas décadas anteriores (SARS em 2002 e MERS em 2012) — foi capaz de gerar uma catástrofe a nível global, quem dirá o que esses seres desconhecidos seriam capazes de fazer com a nossa sociedade? Seguindo a linha cronológica, qual será a próxima doença em 10 anos? Ou 20?
Não tão lentamente assim, vamos respirar (?) e morrer. Mas por que se preocupar com a vida na Terra se a gente descobrir vida em Marte, não é mesmo?
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* LUPIN MARQUES LOUBACK
Primeiro homem trans do curso de Medicina da UEMS, interno do 6º ano, com história de atuação em medicina canábica e psicodélica, pesquisador em saúde mental indígena pelo grupo GEPSI, atuação como coordenador de diversidade e combate a opressão pelo DCE e conselheiro do CEPE, idealizador do projeto de ensino Diversidade na Universidade - DUn, atuação na linha de frente em ILPIs durante a COVID-19.
REFERÊNCIAS
SINIMBÚ, Fabíola. Brasil teve 113,9 milhões de hectares atingidos pelo fogo este ano. Agência Brasil, Brasília, 12 set. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-09/brasil-teve-1139-milhoes-de-hectares-atingidos-pelo-fogo-este-ano#:~:text=Para%20o%20per%C3%ADodo%2C%20os%20estados,atingido%20at%C3%A9%20agosto%20de%202024. Acesso em: 25 set. 2024.
BRASIL. Ministério da Saúde. Queimadas e incêndios florestais: alerta de risco. Brasília: Ministério da Saúde, 2023. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/queimadas_incendios_florestais_alerta_risco.pdf. Acesso em: 25 set. 2024.
SOCIETY BRASILEIRA DE PNEUMOLOGIA E TISIOLOGIA. The Lancet: queimadas na Amazônia. Disponível em: https://sbpt.org.br/portal/the-lancet-queimadas-amazonia/#:~:text=Ao%20The%20Lancet%2C%20o%20Presidente,organismo%20meses%20ap%C3%B3s%20a%20exposi%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 25 set. 2024.
MATO GROSSO DO SUL. Altas temperaturas, tempo seco e fumaça: condições apresentam risco à saúde e exigem cuidados especiais. Disponível em: https://www.saude.ms.gov.br/altas-temperaturas-tempo-seco-e-fumaca-condicoes-apresentam-risco-a-saude-e-exigem-cuidados-especiais/. Acesso em: 25 set. 2024.
NEOENERGIA. Queimadas no Brasil: por que devemos nos preocupar? Disponível em: https://www.neoenergia.com/w/queimadas-no-brasil-por-que-devemos-nos-preocupar-#:~:text=Por%20que%20ocorrem%20tantas%20queimadas,retirada%20de%20madeira%20para%20comercializa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 25 set. 2024.
BOTELHO, Maurilio. Planeta em chamas: como a crise capitalista aprofunda o colapso ambiental. Blog da Boitempo, 24 ago. 2021. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2021/08/24/planeta-em-chamas-como-a-crise-capitalista-aprofunda-o-colapso-ambiental/. Acesso em: 27 set. 2024.
OLSEN, Tyler James; DORMAN, Brian. O capitalismo incendeia a floresta amazônica. Tradução de Giuliana Almada. Jacobin Brasil, 06 set. 2019. Disponível em: https://jacobin.com.br/2019/09/o-capitalismo-incendeia-a-floresta-amazonica/. Acesso em: 27 set. 2024.
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